domingo, 16 de setembro de 2012

Matópolis, um conto



Odorico Paraguaçu, modelo de gestor da pacata Matópolis

Matópolis era uma cidade já bastante caçoada pelos habitantes das localidades vizinhas. O motivo era mais que visível: não havia no país outro município com aquele nome tão peculiar. No entanto, engana-se quem imagina que o registro se deu por conta do alto índice de violência do local – na verdade, ocorreu a partir da contração de polis, verbete grego que significa cidade, com a densa vegetação de mata atlântica ao redor do pequeno lugarejo. Na boca dos seus primeiros cidadãos, mato + polis = Matópolis.

Como em toda cidade de médio porte, os matenses estavam em polvorosa com o período eleitoral. Por ali, como uma quase regra nos grotões do país, os cidadãos se dividiam entre duas candidaturas ao cargo de chefe do executivo local. De um lado estava o bastante conhecido Lucrécio Atanásio do Amaral, sujeito abordado carinhosamente pelo povo matense como “Seu Lu”. Do outro, ostentando a bandeira da oposição, figurava o jovem Olegário Vitorino da Paz, chamado pela alcunha também carinhosa de “Paizinho”. As eleições se aproximavam, e o rebuliço na cidade aumentava a cada dia.

Seu Lu era primo da esposa do senador Mendonça Alves Cosme, ou “Mendonção”, que tinha sido prefeito de Matópolis por dois mandatos. Fez casas populares, calçou ruas, distribuiu leite e pão de graça, promoveu shows de artistas famosos, distribuiu brinquedos para as crianças, empregou uma legião de desempregados na prefeitura... enfim, naquele fim de mundo, Mendonção era um semideus - tanto que de lá tirou boa parte de sua votação ao senado.

Na outra trincheira, estava um desacreditado Paizinho. Farmacêutico, dono da primeira farmácia de Matópolis, um sujeito conhecido por todos. Tinha ajudado muita gente: aplicava injeção no glúteo, intravenosa, fazia nebulização e distribuía xaropes e vermífugos a todos que o procuravam. Era muito querido, até cometer o grande erro de sua pacata vida: meter-se a disputar o executivo municipal contra Seu Lu, o primo da esposa do senador.

A partir desse momento, começou na cidade uma forte campanha de desconstrução da imagem de Paizinho. O homem que antes era visto pelos matenses como caridoso e de boa índole, passou a ser conhecido como o traidor de Matópolis. Carros de som circulavam na cidade, alertando para o perigo de “traidores” tomarem conta do dinheiro público. Mais à frente, uma nova pancada em Paizinho: acusado pelo Conselho de Farmacêuticos de charlatanismo, perdeu seu registro profissional.

No entanto, o auge da desconstrução de bom homem de Paizinho se daria no grande comício de Seu Lu. Era um domingo a noite. As ruas no entorno estavam todas iluminadas. Carros plotados chegavam de todos os lados, e o locutor no palanque, histérico, conclamava a todos para o grande momento que se aproximava. Estariam ali juntos, em instantes, além de Seu Lu e os candidatos a vereador da chapa, o senador Mendonção e o governador do estado, aliado de primeira hora. A multidão, composta por funcionários da prefeitura, comissionados, desempregados, desdentados, senhoras da sociedade e bajuladores começava a se apertar na praça, à procura da melhor visão para o espetáculo.

No palanque, uma estrutura de compensado fixada sobre pés de ferro, aquinhoavam-se os candidatos a vereador, acotovelando-se entre si pelo melhor ângulo de exposição para a multidão. Dentre eles, o locutor oficial interrompera as falas dos candidatos com o anúncio: de forma apoteótica, chegavam ao local, “nos braços do povo”, Seu Lu, Mendonção e o excelentíssimo senhor governador.

Havia um estado de euforia coletiva entre os presentes. Num canto, senhoras aposentadas choravam. Mais perto da comitiva, ainda sem conseguir subir no palanque, dezenas de desempregados empurravam-se, na tentativa de se fazerem vistos. Funcionários públicos durante o dia, alguns a noite se prestavam ao papel de seguranças. O tumulto era encarado por Mendonção e companhia com aqueles sorrisos de orelha a orelha, meticulosamente ensaiado com o marketing da campanha.

No discurso, Seu Lu, com um suor que lhe escorria pelo rosto, gritava à multidão que ali estava o grupo que tinha melhorado a cidade. Destacava o “profissionalismo” da gestão a quatro mãos dele e Mendonção, as casas aos pobres, as festas de fim de ano com famosos artistas. “Até aquele menino que se acidentou, filho do cantor sertanejo, veio aqui”, enfatizava Seu Lu, fazendo referência ao cantor Pedro, porém esquecendo seu nome. Nada que um chumbeta não lhe soprasse ao ouvido.

Mendonção foi mais enfático na tarefa de desconstruir Paizinho. Chamou-o de “traíra”, acusando-o de ter ganho muito dinheiro com sua farmácia, às custas dos medicamentos e atendimentos sob demanda da prefeitura. “Aquele traíra cuspiu no prato que comeu”, afirmava o senador. “Se traiu o prefeito hoje, vai trair o povo amanhã”, completava, sob um efusivo rebuliço dos presentes. Para Mendonção, não bastava o mandato de senador e uma acachapante vitória nas eleições. Era necessário dizimar qualquer expectativa de criação de uma oposição local.

E assim se fez. Na Matópolis de hoje, Paizinho segue com sua farmácia, porém após a derrota nas urnas, os clientes minguaram. Os vermífugos e os xaropes não são mais tão distribuídos como antes. Os poucos aliados que lhe apoiaram até a eleição, foram seduzidos pela situação, e lá estão até hoje. E Seu Lu, eleito de modo consagrador, segue o trabalho iniciado por Mendonção: em breve, inauguraria mais três conjuntos habitacionais populares, oito cisternas nos povoados e cento e duas ruas calçadas. 

E claro, no fim do ano, houve uma grande festa com aquele menino que se acidentou. Só que dessa vez, sem que Seu Lu esquecesse seu nome. 


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Post-script: essa é uma estória de ficção. Qualquer semelhança com fatos, nomes e localidades que eventualmente tenham sido citados nesse conto, terá sido mera coincidência.

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