Odorico Paraguaçu, modelo de gestor da pacata Matópolis |
Matópolis era uma cidade
já bastante caçoada pelos habitantes das localidades vizinhas. O motivo era
mais que visível: não havia no país outro município com aquele nome tão
peculiar. No entanto, engana-se quem imagina que o registro se deu por conta do
alto índice de violência do local – na verdade, ocorreu a partir da contração
de polis, verbete grego que significa
cidade, com a densa vegetação de mata
atlântica ao redor do pequeno lugarejo. Na boca dos seus primeiros cidadãos, mato + polis = Matópolis.
Como em toda cidade de
médio porte, os matenses estavam em polvorosa com o período eleitoral. Por ali,
como uma quase regra nos grotões do país, os cidadãos se dividiam entre duas
candidaturas ao cargo de chefe do executivo local. De um lado estava o bastante
conhecido Lucrécio Atanásio do Amaral, sujeito abordado carinhosamente pelo
povo matense como “Seu Lu”. Do outro, ostentando a bandeira da oposição,
figurava o jovem Olegário Vitorino da Paz, chamado pela alcunha também
carinhosa de “Paizinho”. As eleições se aproximavam, e o rebuliço na cidade
aumentava a cada dia.
Seu Lu era primo da
esposa do senador Mendonça Alves Cosme, ou “Mendonção”, que tinha sido prefeito
de Matópolis por dois mandatos. Fez casas populares, calçou ruas, distribuiu
leite e pão de graça, promoveu shows de artistas famosos, distribuiu brinquedos
para as crianças, empregou uma legião de desempregados na prefeitura... enfim,
naquele fim de mundo, Mendonção era um semideus - tanto que de lá tirou boa
parte de sua votação ao senado.
Na outra trincheira,
estava um desacreditado Paizinho. Farmacêutico, dono da primeira farmácia de
Matópolis, um sujeito conhecido por todos. Tinha ajudado muita gente: aplicava
injeção no glúteo, intravenosa, fazia nebulização e distribuía xaropes e vermífugos
a todos que o procuravam. Era muito querido, até cometer o grande erro de sua
pacata vida: meter-se a disputar o executivo municipal contra Seu Lu, o primo
da esposa do senador.
A partir desse momento,
começou na cidade uma forte campanha de desconstrução da imagem de Paizinho. O
homem que antes era visto pelos matenses como caridoso e de boa índole, passou
a ser conhecido como o traidor de Matópolis. Carros de som circulavam na
cidade, alertando para o perigo de “traidores” tomarem conta do dinheiro
público. Mais à frente, uma nova pancada em Paizinho: acusado pelo Conselho de
Farmacêuticos de charlatanismo, perdeu seu registro profissional.
No entanto, o auge da
desconstrução de bom homem de Paizinho se daria no grande comício de Seu Lu.
Era um domingo a noite. As ruas no entorno estavam todas iluminadas. Carros
plotados chegavam de todos os lados, e o locutor no palanque, histérico,
conclamava a todos para o grande momento que se aproximava. Estariam ali
juntos, em instantes, além de Seu Lu e os candidatos a vereador da chapa, o
senador Mendonção e o governador do estado, aliado de primeira hora. A multidão,
composta por funcionários da prefeitura, comissionados, desempregados,
desdentados, senhoras da sociedade e bajuladores começava a se apertar na praça,
à procura da melhor visão para o espetáculo.
No palanque, uma
estrutura de compensado fixada sobre pés de ferro, aquinhoavam-se os candidatos
a vereador, acotovelando-se entre si pelo melhor ângulo de exposição para a
multidão. Dentre eles, o locutor oficial interrompera as falas dos candidatos
com o anúncio: de forma apoteótica, chegavam ao local, “nos braços do povo”,
Seu Lu, Mendonção e o excelentíssimo senhor governador.
Havia um estado de
euforia coletiva entre os presentes. Num canto, senhoras aposentadas choravam.
Mais perto da comitiva, ainda sem conseguir subir no palanque, dezenas de
desempregados empurravam-se, na tentativa de se fazerem vistos. Funcionários
públicos durante o dia, alguns a noite se prestavam ao papel de seguranças. O
tumulto era encarado por Mendonção e companhia com aqueles sorrisos de orelha a
orelha, meticulosamente ensaiado com o marketing da campanha.
No discurso, Seu Lu, com
um suor que lhe escorria pelo rosto, gritava à multidão que ali estava o grupo
que tinha melhorado a cidade. Destacava o “profissionalismo” da gestão a quatro
mãos dele e Mendonção, as casas aos pobres, as festas de fim de ano com famosos
artistas. “Até aquele menino que se acidentou, filho do cantor sertanejo, veio
aqui”, enfatizava Seu Lu, fazendo referência ao cantor Pedro, porém esquecendo
seu nome. Nada que um chumbeta não lhe soprasse ao ouvido.
Mendonção foi mais
enfático na tarefa de desconstruir Paizinho. Chamou-o de “traíra”, acusando-o
de ter ganho muito dinheiro com sua farmácia, às custas dos medicamentos e
atendimentos sob demanda da prefeitura. “Aquele traíra cuspiu no prato que
comeu”, afirmava o senador. “Se traiu o prefeito hoje, vai trair o povo
amanhã”, completava, sob um efusivo rebuliço dos presentes. Para Mendonção, não
bastava o mandato de senador e uma acachapante vitória nas eleições. Era
necessário dizimar qualquer expectativa de criação de uma oposição local.
E assim se fez. Na
Matópolis de hoje, Paizinho segue com sua farmácia, porém após a derrota nas
urnas, os clientes minguaram. Os vermífugos e os xaropes não são mais tão
distribuídos como antes. Os poucos aliados que lhe apoiaram até a eleição,
foram seduzidos pela situação, e lá estão até hoje. E Seu Lu, eleito de modo
consagrador, segue o trabalho iniciado por Mendonção: em breve, inauguraria
mais três conjuntos habitacionais populares, oito cisternas nos povoados e
cento e duas ruas calçadas.
E claro, no fim do ano,
houve uma grande festa com aquele menino que se acidentou. Só que dessa vez,
sem que Seu Lu esquecesse seu nome.
* * *
Post-script:
essa é uma estória de ficção. Qualquer semelhança com fatos, nomes e
localidades que eventualmente tenham sido citados nesse conto, terá sido mera
coincidência.
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