quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Um sábado triste


A complexa lógica de pedir uma ditadura em plena democracia (foto: Estadão)

Há no Brasil uma parcela de pessoas que parecem desconhecer os preceitos básicos de uma democracia, dentre eles o princípio basilar: o respeito, pela minoria, à vontade da maioria – mesmo que ela tenha sido conquistada por uma diferença de aproximadamente 3,4 milhões de votos.

Poderíamos discutir aqui que esta nem foi uma diferença tão apertada assim. Nos Estados Unidos, o “modelo perfeito de democracia” dessa parcela deseducada que por aqui habita, as últimas eleições, em 2012, foram decididas por uma diferença de pouco menos de 5 milhões de votos em favor do democrata Barack Obama. Por lá, ninguém falou em “EUA dividido”, ou em “sul burro” (o sul dos EUA é o equivalente ao nosso nordeste).

O que se viu no último sábado, na avenida paulista, foi o mais decadente espetáculo que esta minoria desprovida de preceitos democráticos foi capaz de produzir. Por lá, aglomeraram-se tipos de toda sorte: militares saudosos, reacionários separatistas, gente da classe média, parte da elite branca paulistana. Pediam aos gritos uma assustadora “intervenção militar” no Brasil – embora alguns fizessem questão de diferenciar “intervenção” de “golpe”, para dar um colorido todo democrático ao ambiente.

Do alto de um trio elétrico, dois personagens coroavam a decadência dos princípios nada republicanos que movia o ato: Eduardo Bolsonaro, recém eleito deputado federal por São Paulo (embora more no Rio de Janeiro), falava em “paz” e “ordem”, ostentando uma pistola semi automática .40 escondida sob sua camisa; e Lobão, músico quase aposentado, agora ativista político, repetia no microfone o que uma liderança tucana, parafraseando Carlos Lacerda, dizia nas redes dias antes: “Ganhou, mas não pode governar. Será assim daqui pra frente. Cada dia seremos maiores”. 

Embora não tenha sido disparado pela pistola .40 de Eduardo Bolsonaro, o que se viu no sábado na paulista foi um duro tiro na nossa ainda jovem democracia. Não importa qual eufemismo seja dado ao que essa gente não quer qualificar como golpe, mas qualquer ação que não seja derivada da maioria, que elegeu legitimamente a candidata do PT, é o retorno do velho golpismo, tanto faz se na versão milico ou civil. É a minoria sobrepujando uma maioria que, embora silenciosa, deu seu recado nas urnas quando convocada.

Mais respeito com a democracia, turma. Que nunca mais se repita um sábado como o último, que mais pareceu uma triste e nublada quarta-feira de cinzas.


domingo, 17 de março de 2013

Redução da maioridade penal: um retrocesso

Jovens brasileiros atrás das grades: punir criminalmente é mesmo
a solução para a violência crescente no país?
Hoje há um quase consenso em todos os setores da sociedade: a violência é um dos principais fatores que preocupam o brasileiro. Vivemos em um país acuado. Quando transportamos essa preocupação para a realidade alagoana, o cenário chega a ser assustador. Somos o estado mais violento do Brasil, e temos algumas das cidades mais violentas do mundo.

Amedrontado por essa realidade, a sociedade começa a cobrar mais veementemente dos governos soluções para a situação. E entre um e outro episódio traumático, como a morte do menino João Hélio, em 2007, ou a do torcedor do San Jose de Oruro Kevin Estrada por um torcedor do Corinthians, há alguns dias – ambas praticadas por jovens menores de idade – vem à tona o debate sobre a redução da maioridade penal.

Podemos começar essa questão invertendo algumas lógicas pré-fabricadas por uma sociedade com medo. A primeira delas é que o adolescente brasileiro não é o maior responsável pela escalada da violência no Brasil, mas sim a maior vítima dela. Dados da UNESCO (United Nation Educational, Scientific and Cultural Organization ou Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas) complementados pelo Núcleo de Estudos de Violência da USP coletados entre 1980 e 2002, mostram que o número de mortes de adolescentes de 12 a 17 anos por causas externas – decorrentes da violência – aumentaram em 254,4%, e hoje são responsáveis por 40% do total de mortes de indivíduos nessa faixa.

Além disso, ao se discutir redução da maioridade, cai mais um mito preconceituoso: o de que a comunidade internacional já têm leis desse tipo. Dos 53 países pesquisados pelo UNICEF, 79% já definem que somente adolescentes maiores de 18 anos podem responder criminalmente por delitos. E mais, muitos deles debatem atualmente o aumento da maioridade penal, o que faz o Brasil caminhar na contramão de um debate mundial sobre o tema.

Vamos ao contraponto. Então o que dizem os outros 11 países que efetuam penas criminais a crianças e adolescentes? Para ficar apenas no exemplo mais famoso deles, em 11 de maio de 2007 o jornal The New York Times, um dos mais lidos e influentes dos Estados Unidos, publicou em editorial de página inteira que o sistema punitivo adotado por 40 estados americanos é um “equívoco”, e que isso não reduziu a criminalidade no país. E mais, mostrou exemplos de discrepâncias absurdas criadas pelo sistema punitivo estadunidense, como o do adolescente de 17 anos que, após ser punido por roubar roupas do vizinho, perdeu definitivamente sua liberdade condicional depois de pegar sem avisar a bicicleta de outro vizinho. Para encerrar, o jornal arremata sua opinião com um dado arrebatador: de cada 4 jovens presos no sistema carcerário americano, 3 são negros. 

Aqui no Brasil, de acordo com o IBGE, adolescentes na faixa dos 12 aos 17 anos representam 15% da população. Desse percentual, de acordo com o UNICEF, menos de 1% estão envolvidos em algum tipo de delito previsto no ECA. E desse número de infratores, quase 60% dizem respeito a pequenos delitos, como furto, roubo e porte de arma. Apenas 1,4% respondem por homicídio, e 5% por tráfico de entorpecente.

Outro aspecto importante diz respeito ao caráter punitivo de uma estrutura de leis que devem corrigir adolescentes que, em algum momento, erraram. Que modelo queremos para nossas crianças e adolescentes, um que pune e encarcera, tirando-lhe a esperança e as perspectivas de futuro, ou um que educa e acompanha, reforçando a crença na reabilitação e correção?

Temos uma das mais avançadas leis de tratamento a crianças e adolescentes do mundo, e isso não é mera retórica. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) propõe responsabilização do adolescente que comete ato infracional com aplicação de medidas socioeducativas. O ECA não propõe impunidade. É adequado, do ponto de vista da Psicologia, uma sociedade buscar corrigir a conduta dos seus cidadãos a partir de uma perspectiva educacional, principalmente em se tratando de adolescentes.

O Brasil não pode acobertar esse importante debate sob o manto do medo. Uma sociedade, mesmo acuada por níveis de violência cada vez mais incontroláveis, deve cuidar de seus jovens, e não pressionar o Estado a oficializar medidas privativas de liberdade. Não podemos andar pra trás.

* * *

Em tempo: o autor do último projeto de redução de maioridade penal para 16 anos ainda em tramitação no senado é o ex-senador (cassado) Demóstenes Torres (DEM-GO).


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Yoani Sánchez - Sobre insignificância e "idiotas"

Manifestação contra Yoani em Salvador: democracia para
os dois lados (foto: Margarida Neide - Ag. A Tarde)


Em pelo menos um ponto, todos concordamos: a presença no Brasil da jornalista e blogueira cubana Yoani Sánchez causou um rebuliço muito maior do que qualquer dos lados envolvidos com sua visita imaginaria. Pelos fóruns online e off-line país afora, não se fala de outro assunto.

Há um aspecto que a blogueira ajudou a reforçar, em que pese sua ferrenha oposição ao governo cubano. Yoani reafirmou a importância da revolução socialista – apesar de dita por alguns como arcaica e ultrapassada – e o peso estratégico de Cuba no cenário internacional. Do contrário, não haveria tantas manchetes e estardalhaço em torno da visita de uma cubana ao nosso país – menos pelo que ela é (uma jornalista mediana e de pouca importância) e mais pelo que representa.

O curioso tem sido a reação de setores do mais convicto conservadorismo às manifestações contrárias a Yoani. É uma lógica confusa: os reacionários reconhecem e reivindicam o direito de livre expressão da blogueira cubana fora de seu país, mas criticam violentamente brasileiros que levantam a voz contra seu discurso. Vale a democracia para Yoani, mas não vale para os jovens que protestam? Como assim?

Se por um lado vejo setores da esquerda claramente exagerando na dose, por outro vejo toda uma nova geração de fascistóides, em seus devidos espaços na mídia local e nacional, classificando aqueles que também exercem seu livre direito de expressão como “idiotas”, “moleques” e “gente perigosa e intolerante”.

Outro aspecto que os “especialistas” preferem esquecer: como uma simples blogueira, desempregada e “sofrendo retaliações” por parte do governo cubano, financia uma turnê por doze países com casa, comida e roupa lavada, para ela, marido e filho? Haveria uma relação, digamos, prostituída entre ela, a SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa, espécie de clube privé dos magnatas da mídia) e o Instituto Millenium (Ong ligada às Organizações Globo, do qual é citada no site como “especialista”)?

Esses “moleques idiotas”, caros especialistas, são só adolescentes que se arriscam na contramão da lógica estabelecida, querendo debater e ser protagonista política, enquanto a maioria prefere saber do último capítulo da novela. Não há nada de “perigoso e intolerante” nisso.

Reconfortante saber que, mesmo contra essa nova onda de apolitização que ronda o Brasil, onde até novos partidos optam por esconder de seus futuros eleitores (sob o eufemismo de “rede”) o que realmente são, jovens procuram e expressam democraticamente o contraponto político de Yoani.

Viva a revolução cubana, que mesmo após 54 anos, ainda serve de combustível a essa garotada.


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Escandindo Tarantino

Por Enderson Nobre*


Poucos cineastas na atualidade dividem tantas opiniões quanto Tarantino, amado e odiado na mesma proporção. Tarantino vem gerando polêmicas no decorrer de sua carreira. Uma delas, talvez a mais notória, a acusação de racismo feita pelo cineasta americano Spike Lee, na qual o critica pelo uso do termo “Nigger”, uma expressão racista dita por vários personagens no filme “Jackie Brown”, o terceiro da carreira de Tarantino. Recentemente, pouco antes do lançamento de seu novo filme Django Livre, o diretor foi novamente alvo das críticas de Spike Lee, que desta vez não gostou de ver o tema da escravidão nos Estados Unidos servindo como base para Django. Lee teria dito que a escravidão foi um holocausto e não deveria ter sido tratada como um western do Sergio Leone. Como se vê, Quentin Tarantino está longe de ser uma unanimidade. 

Desde Cães de Aluguel, o cineasta americano vem agradando a critica e arregimentando fãs pelo mundo afora, também gerando polêmica no que diz respeito às famosas e inúmeras “homenagens” que faz nos seus filmes para diretores e clássicos do cinema “B”. Esta característica de “reciclar” produções esquecidas, obscuras e até menosprezadas pelos críticos mais conservadores, fizeram a fama de Tarantino ao mesmo tempo em que gera argumentos para acusar o diretor de falta de originalidade, de ser formuláico e redundante. Acusações a parte, é inegável que o diretor vem, a meu ver, passando por um período de decadência, entregando filmes cheios de referências cinéfilas e pop, que no mais são produções vazias que cumprem apenas o propósito de puro entretenimento, sem apresentar o vigor de seus primeiros trabalhos. No entanto, Tarantino é um cineasta experiente e talentoso que sabe muito bem dar o que seu público espera: longos diálogos, violência de gibi, trilha sonora pop e, principalmente, as famosas referencias aos clássicos B, garantindo a diversão dos fãs de cinema, que ficam esperando por uma cena onde possam encontrar um ator, um figurino ou uma citação referente a alguma obra obscura de algum país da Europa ou do Japão. 

Em Django Livre, a situação não é diferente. Tarantino usa além do nome Django, do icônico personagem interpretado por Franco Nero (que faz uma aparição em seu filme) na película de 1966 realizada por Sergio Corbucci; usa também a música tema do filme original na abertura de seu novo longa. As inúmeras referências ao cinema de Drive - in, blacksploitation e spaghetti westerns estão lá, junto com a famosa verborragia do diretor. É pertinente ressaltar que “Django Livre”, não é uma refilmagem, e sim um liquidificador de cultura pop como o diretor vem fazendo ao longo de sua carreira e que, fatalmente, encontrou seu público. 

Li há algum tempo atrás uma entrevista com Tarantino, em que ele como diretor criticava Woody Allen por fazer sempre o mesmo filme; com o passar do tempo, ele caiu na mesma armadilha, vem se repetindo filme após filme, e ganhando cada vez mais dinheiro com isso.


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Enderson Nobre é cientista social formado pela Universidade Federal de Alagoas e cinéfilo.