sábado, 24 de novembro de 2012

Apenas um rapaz latinoamericano




Já não é novidade que todo artista brasileiro, num determinado momento de sua carreira, é levado a fazer uma escolha: ou se entrega à máquina de moer da indústria cultural nacional ou, se tem personalidade, rompe com essa lógica e se garante na qualidade do que faz, divulgando seu trabalho onde interessa, a ele e a seu público.

Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes é um desses conhecidos artistas. Há 47 anos na estrada, sempre que confrontado com o apelo comercial e a qualidade no momento de compor sua obra, trilhou sem pestanejar pela segunda opção. Ainda no começo de sua carreira, além das churrascarias, pequenos ginásios e praças onde levava seus shows, se apresentava em locais pouco comuns para a indústria musical: escolas, teatros, hospitais, penitenciárias e fábricas.

Sua obra segue até hoje essa mesma filosofia. Suas letras falam sobre amor e autoconhecimento, mas também são carregadas de um sentimento libertário poético, leve, sereno. Seu estilo de escrever o que canta é único: mil ideias acopladas em versos esteticamente muito bem estruturados, levando o ouvinte a acompanhá-lo em sua viagem, e a saber exatamente onde ele quer chegar. Coisa que alguns poucos gênios da música brasileira sabem fazer.

A partir dessa postura, não causa estranheza que a indústria cultural, e todos os seus tentáculos, retirem do “mainstream” um sujeito que pouco se importa com a estética física, com a agenda de entrevistas com “figurões” da TV, com compromissos em redações de revistas de fofoca, com fotos para paparazzis. Se não se alinha a essa agenda, vai pro limbo artístico.

Em 2009, a TV Globo insistiu em jogar a primeira pá de cal na carreira de Belchior. Numa reportagem de Patrícia Poeta – a mesma que hoje ostenta a bancada do principal jornal da emissora e que, vale sempre lembrar, é esposa de Amauri Soares, diretor de projetos e eventos especiais da casa desde 2007 – foi dito que o cantor estava desaparecido, levantando uma série de rastros deixados por ele antes do sumiço: um carro abandonado no estacionamento do aeroporto, aluguéis atrasados, etc. Na matéria, era pouca ou nenhuma a importância dada às razões que levaram Belchior a sumir do mapa – a ideia era de transmitir a imagem de um artista decadente, sem novas ideias, sem dinheiro, sem fama. 

Passado o susto, desmentido pelo próprio Belchior – que teve que sair de seu retiro social, onde passava os dias a compor, no Uruguai – há alguns dias a TV Globo volta a tocar no assunto, mais uma vez no Fantástico. E novamente sem ter como atacar toda uma história musical brilhante, vai em busca das pendengas pessoais do artista: novos aluguéis atrasados e dívidas em estacionamentos. De novo provocado a falar sobre o assunto, Belchior foi reto: não há mais nada a dizer.

Curioso como a indústria cultural é impiedosa na hora de querer desconstruir a biografia de personas non gratas nos seus corredores. Por duas vezes noticiaram, para todo o país, que Belchior é um sujeito atolado em dívidas. Que não sabe direcionar financeiramente sua vida, assim como milhões de brasileiros que hoje estão com “nome sujo” nos cadastros da vida. Perseguem-no não pela qualidade de sua obra, uma das melhores da língua portuguesa, mas pelas suas dívidas pessoais. Um crime, não?

Belchior já dava sinais de que sua relação com o vil-metal não era lá muito amistosa em 1976, quando lançou seu maior sucesso: “eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes, e vindo do interior”. Boa pista.

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Veja aqui uma performance matadora de Belchior em 1982, para a música Divina Comédia Humana, do disco Todos os Sentidos (1978):

 

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